VIAGEM AO FIM DO MUNDO: COMO é FAZER UM CRUZEIRO PELA ANTáRTICA

O coaxar das botas afundando na neve até a canela faz dueto com o espetar dos bastões de caminhada, que trespassam o tapete macio quase em câmera lenta. Rajadas da nevasca vêm na horizontal, agitam o capuz azul como uma vela solta no mastro, colam flocos brancos no rosto, fazem a testa e os olhos enrugarem, incrédulos com uma beleza inédita, acachapante.

Mais de uma vez, em menos de hora, não consigo controlar a emoção e me pego soluçando, falando sozinho, quase um delírio – apalpo novas sensações, giro 360 graus, ando de costas, me perco na paisagem. A cena tem o ritmo de um sonho – sonho antigo, diga-se. Nos meus 50 anos, desde sempre quis perambular à toa por esquinas antárticas. Nesse instante, deixo pegadas em Damoy Point, perto de Port Lockroy, na Ilha Wiencke – Antártica.

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Observo sem pressa o trânsito de pinguins-gentoo, a conversa entre eles, a paquera, e até os finalmentes – se é que me faço entender. Mesclo a admiração de planos abertos (enquadrando centenas de indivíduos, impávidos sob a cortina de neve); com planos mais fechados, atento ao tamanho de cada animal (podem chegar a 90 cm –, é o terceiro maior pinguim, atrás do imperador e do rei); a detalhes como a mancha branca na cabeça e o bico de um laranja intenso; ao jeito trôpego de ser (talvez não exista bicho mais hilário e fofo no mundo) e a preguiça de andar de barriga cheia e preferir deslizar tobogã abaixo, com as asas abertas, até mergulhar no mar coalhado de gelo e pôr em prática o que sabe fazer de melhor: nadar. O gentoo é um exímio nadador, a ave mais rápida sob a água, alcançando 36 km/h – não o suficiente para escapar de uma orca, que arranca a mais de 50 km/h…

Ele ganhou os mares em julho de 2022. Está tinindo de novo, com design escandinavo e ambientes espaçosos para lá de agradáveis – mal voltei da viagem e já tenho uma saudade danada do navio. Sabe aquele lugar de que você gosta do cheiro, dos móveis, da comida, da música, do serviço, do spa com massagem da balinesa Yuslianti Ab, da sauna com vista para o mar, da jacuzzi quente no deck externo com temperaturas abaixo de zero? Então, esse lugar é o SH Vega.

Fiquei 10 dias nele, no roteiro que zarpa de Ushuaia, localizada no extremo sul da Argentina, que costuma vendê-la como a “cidade mais austral do mundo”, o que não é verdade. Isso porque Puerto Willians, no Chile, fica mais ao sul (a latitude de Ushuaia é 54º 48’ 57’’ contra 54º 93’ 35’’ da sua vizinha chilena). Bom, o que importa para nós, viajantes, é que Ushuaia é linda pra chuchu, cercada por picos nevados, com o porto na boca do Canal de Beagle, que funciona como uma confortável sala de estar antes da balbúrdia do Drake.

São 115 metros de comprimento, 23 de largura, nove decks, capacidade para 152 passageiros, tripulação de 120 funcionários e 76 cabines. As duas maiores são a Premium Suítes, com 49 metros quadrados, walking closet, banheira, sala, quarto e um terraço privativo de 12 metros quadrados – fiquei em uma delas, a 629, no deck 6.

Enquanto o SH Vega desfila no manso Canal de Beagle, ladeado por baixas montanhas, algumas cobertas pelo verde das árvores, tomo conhecimento das histórias de vida de alguns passageiros e, de cara, entendo o que existe em comum entre eles, independentemente da idade de cada um (a média é de 53 anos): por trás da decisão de visitar a Antártica, há uma urgência de viver, de não adiar mais os principais desejos, de parar de repetir que “não tem tempo” para uma jornada mais longa, de visitar o quanto antes o que de mais maravilhoso (ainda) existe neste planeta. Talvez por tudo isso, se crie uma atmosfera de confraternização tão rapidamente. Sorrisos escapam, conversas pipocam por todos os lados, histórias e viagens mundo afora são compartilhadas e, de repente, parece que somos amigos de longa data, brindando com ótimos vinhos da França, da Itália, da Espanha, da África do Sul e da Califórnia.

“Eu e minha mulher nunca tínhamos visitado a América do Sul”, começa David Hawdon, advogado australiano aposentado, de 70 anos, de Sunshine Coast, ao lado da esposa Fiona. “Até que aconteceu um episódio que nos tocou muito. Meu melhor amigo tratava um câncer na próstata, mas daí foi para o cérebro e ele soube que não teria muito tempo de vida. Saiu viajando com a família, foi a diversos lugares e morreu um mês após retornar para casa. No funeral dele, o padre disse uma frase que gravamos: ‘a vida é muito curta para dias preguiçosos’. Ao chegarmos pra casa, sentamos na sala e ficamos em silêncio. Em pouco tempo, recebi pelo celular uma propaganda de viagem para a Antártica, algo em que nem sonhávamos. Olhei para a Fiona e perguntei: ‘vamos?’. Bom, poucas semanas depois, cá estamos – e muito felizes.”

Benjamin Brumpton, de 27 anos, australiano, este de Perth, que trabalha com mineração de ouro, é outro passageiro impactado por acontecimentos com o melhor amigo – no caso, um suicídio. “Resolvi que não dava para esperar ficar mais velho para sair viajando pelo mundo e, desde 2018, tenho rodado bastante, já fui a 39 países e pisei em todos os continentes – preciso ir ao Brasil, mas não planejo nada com muita antecedência. Só decido um mês antes.” Ao final da viagem, Benjamin resumiu a experiência como: “absolutamente fenomenal, 10 vezes melhor do que imaginava, você se sente criança de novo e passa a olhar a vida de uma forma diferente.”

Até que acordamos no dia 9 de novembro na Baía de Curtiss, ao sul da Ilha Trinity, cercados pelos Cabos Sterneck e Andreas, um cenário espetacular de altas montanhas com picos rochosos, valentes, furando um vestido grosso de neve fresca. Encostas brancas enormes, despencado no mar que reflete uma faixa dourada de sol antártico. Placas tabulares gigantes de gelo boiando, um silêncio absurdo como se uma orquestra fosse começar a tocar no segundo seguinte, uma emoção profunda arrebenta pela minha garganta e choro de novo, que nem criança. A Antártica está logo ali – com um esplendor divino que foto alguma consegue traduzir –, enquadrada pelas amplas portas deslizantes de vidro do terraço privativo da suíte 629. Chegamos.

Agora só resta se concentrar na sequência certa de camadas de roupa para não congelar lá fora e esperar a chamada ao Base Camp, ponto de encontro onde vestimos as botas cedidas para uso durante a expedição. O casaco duplo e corta-vento, que cobre toda a vestimenta, fica de presente para cada passageiro. Todas as peças de roupa usadas em solo antártico são esterilizadas. Antes de entrar no zodiac, é necessário passar a bota em solução química para limpeza. Tudo pronto para descer rumo ao Porto Mikkelsen. Só que não.

A Antártica não é museu, nem monumento, muito menos parque temático – não tem hora marcada por aqui. O tempo mudou de uma hora para outra, e os poucos zodiacs que deixaram rastro no mar, logo tiveram que voltar. A segurança de todos está sempre em primeiro lugar. Como bem disse o sul-africano Brandon William, líder da expedição, “quando a mãe natureza decide, não há discussão”. “Há três coisas importantes que o viajante para a Antártica precisa ter: flexibilidade, flexibilidade e flexibilidade.” Amém, Brandon. Levantamos âncora, e seguimos costurando entre as ilhas e os contornos bem recortados da ponta da Península.

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Baleias e excelentes aulas no mar

Os dias passam com Brandon e o capitão Tino avaliando mapas de clima, posições de vento, ; planos B, C e D são discutidos e compartilhados a todo momento pelo alto-falante. Lá fora, os hóspedes passeiam pelos decks de observação com potentes binóculos (emprestados durante o cruzeiro) em punho. Às vezes sozinhos, às vezes em duplas, em casais, em grupos – o fato é que estamos todos fascinados, há um clima geral de felicidade que contagia, que transforma cada segundo em um grande barato.

Até que, nessas de ficar olhando o mar, surge um jato de água na vertical. O coração já dá aquela tropicada. Vem baleia por aí – e não é no singular. Dorsos de orca emergem do mar como em um documentário da National Geographic. Gritaria no deck 7, gente se abraçando, fazendo a festa. “Meu amor, finalmente realizei meu sonho de ver orca, meu Deus, que coisa linda…”, conta Rômulo Sobral, de 50 anos, empresário do setor marítimo, carioca radicado em São José dos Campos (SP), assim que a esposa Janaína aparece no deck. “Já tinha tentado na Islândia, mas elas não apareceram”, completa Rômulo, com outra viagem especial marcada para março: trekking ao Acampamento Base do Everest, no Nepal, sob a liderança de Manoel Morgado.

Outra experiência impossível de esquecer é o polar plunge – um mergulho no mar (!!!) com uma corda amarrada à cintura, brincadeira de bastante impacto a uma temperatura de – 6 ºC. Poucos minutos após essa “loucurinha”, engatei uma sauna seca com vista para o mar, seguida de jacuzzi quente no deque, dessa vez com um visual de montanhas brancas. Nada mal.

Agora, tão marcante quanto andar na Antártica foi remar um caiaque (sob a liderança do especialista canadense James Roberts) em um mar repleto de gelos de diversos tamanhos, enquanto nevava. Ondulações muito suaves parecem o respirar do mar. O flow das remadas sustenta uma alegria contínua. Mais à frente, enxergo uma grande mancha escura sobre um pequeno iceberg. Remo nessa direção e uma foca vai ganhando corpo, sem se mover.

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